O Crepúsculo Moral dos Tempos Finais
Por Chico Araújo (*)
Imagine-se caminhando por um labirinto de sombras, onde cada
passo ecoa o peso de escolhas apressadas e laços frágeis. É nesse cenário que
Provérbios 6, 20-23 surge como um farol eterno, cortando as trevas da existência
humana.
Escrito por Salomão por volta do século X a.C., em um Israel recém-unificado,
onde a prosperidade material começava a minar os alicerces morais, esse trecho
emerge como uma exortação paterna a um filho ainda imaturo, rodeado por tentações
como a sedução da adúltera e a armadilha da preguiça (cf. vv. 6-19).
"Guarde os preceitos de seu pai e não despreze o ensinamento de sua mãe.
Conserve-os sempre vivos na memória e amarre-os no pescoço.
Desse modo, quando você caminhar, eles o guiarão; quando você
descansar, eles o guardarão; e quando você despertar, eles falarão com você.
Porque o preceito é uma lâmpada, a instrução é uma luz e a repreensão que
corrige é caminho de vida." Aqui, a Torá transcende a mera lei fria: é uma
lâmpada viva, pulsando como o Salmo 119:105 – "Lâmpada para os meus pés é
tua palavra" –, um antídoto à superficialidade que Salomão enxergava como
veneno lento para a alma.
E você, leitor, em uma era de scrolls digitais e conexões efêmeras,
sente o chamado dessa perícope? Ela nos convoca a resgatar princípios como âncoras
firmes, pois o homem contemporâneo, imerso na instantaneidade, afasta-se das raízes
eternas, substituindo-as por uma moral elástica que mascara o egoísmo com o véu
da "autenticidade".
Essa derrocada não é mera conjectura: Paulo, em 2 Timóteo 3,
1-5, profetiza com precisão cirúrgica os contornos dessa queda. "Sabe, porém,
isto: nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis. Pois os homens serão egoístas,
avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais,
ingratos, ímpios, sem afeto natural, implacáveis, caluniadores, sem domínio próprio,
cruéis, inimigos do bem, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos
prazeres que amigos de Deus." Traçada no crepúsculo do Império Romano,
onde o helenismo dissolvia a fé em um cinismo corrosivo, essa galeria de vícios
reflete o caos de nossos dias: relações interpessoais reduzidas a swipes e
stories, onde o afeto se dissipa em likes vazios, e a subverção de leis se
torna rotina, como nos escândalos que banalizam a corrupção. Agostinho de
Hipona aprofunda essa ferida em Confissões (Livro X): "Tu nos fizeste para
Ti, e nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Ti" – um eco
profundo ao salomônico, onde a instrução materna se revela como repouso divino
contra o egoísmo pauliniano.
Assim, a lâmpada de Provérbios não só ilumina caminhos, mas
desvela a teologia da graça: apenas o temor ao Eterno corrige o "sem afeto
natural" de Paulo, restaurando-nos à imagem de Deus. E se, ao ler isso,
você reconhecer traços de inquietude em seu próprio coração?
Essa inquietude filosófica nos leva diretamente a Platão, em A
República (Livro IV), onde a alma justa se configura como uma harmonia delicada
entre razão, espírito e apetites, guiada pela "luz do Bem" – uma metáfora
que vibra em sintonia com a lâmpada salomônica, opondo-se à anarquia dos
"tempos difíceis" paulinianos. Contudo, o homem de hoje, distanciado
de princípios sólidos, nutre uma ética relativista, torcendo regras em prol de
interesses mesquinhos – pense nas relações que sacrificam a fidelidade ao
prazer imediato. Aristóteles, em Ética a Nicômaco (Livro II), nos adverte:
"A virtude é uma disposição habitual de escolher o meio-termo", uma
moderação que, em meio aos excessos digitais de nossa era, é ofuscada por uma
moral flexível que disfarça traições como "liberdade".
Essa tensão ganha profundidade com Confúcio, nos Analectos, que
proclama: "A humildade é a única base sólida de todas as virtudes",
pois sem modéstia o equilíbrio aristotélico ruirá em orgulho oco; e ainda:
"A virtude não habita na solidão: deve ter vizinhos", ensinando que o
florescimento ético nasce de laços comunitários, não do isolamento egoísta – um
antídoto essencial ao desamor pauliniano. Tomás de Aquino, na Suma Teológica
(I-II, q. 94), entrelaça isso ao direito natural: a lei eterna de Deus, gravada
no coração, transforma a repreensão em "caminho de vida", ecoando
Deuteronômio 6, 6-7 – "Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu
coração; tu as inculcarás a teus filhos" –, uma ponte entre Salomão e
Paulo para curar o desamor que despedaça sociedades.
E aqui, os princípios jurídicos se entrelaçam: a equidade
(aequitas), que suaviza a rigidez da lei positiva com justiça moral, ou a
subsidiariedade, que salvaguarda a autonomia familiar e comunitária contra o
centralismo estatal, impedindo que o poder público asfixie a "instrução
materna" como bússola vital. Reflita: em que medida sua vida equilibra
esses fios?
Na arena da ciência política, essa erosão moral se intensifica,
com líderes que, à semelhança dos "traidores e amigos dos prazeres"
paulinianos, elevam o eu acima do bem comum. Maquiavel, em O Príncipe (Cap.
XV), receita ao governante a astúcia da raposa e a força do leão, mas adverte:
"Um homem que queira fazer em todas as partes profissão de homem bom é
inevitavelmente perdido no meio de tantos que não são bons" – um
pragmatismo que, se ancorado na virtude, poderia espelhar a luz salomônica,
orientando o político por princípios inabaláveis.
No entanto, em nossos dias, essa elasticidade raposa-like
degenera em patologia, como revelam escândalos globais onde ambições pessoais
devoram democracias. Rousseau, em Do Contrato Social (Livro I), contrapõe com
vigor: o soberano deve encarnar a vontade geral, não o capricho individual,
ressoando no Êxodo 18, 21 – "Escolhe entre todo o povo homens capazes,
tementes a Deus, leais e inimigos da ganância" –, um ideal que Maquiavel
profaniza, mas que Paulo rotula de "obstinado". A política contemporânea,
infestada de subverções legais em prol de agendas egoístas, implora por uma
repreensão restauradora: líderes como lâmpadas, não sombras, firmados no estado
de direito – que demanda leis previsíveis e impessoais para barrar a corrupção –
ou na separação de poderes, que doma o abuso de autoridade e restabelece o
equilíbrio salomônico entre preceito e prática. Pergunte-se: que tipo de líder –
ou seguidor – você cultiva em seu círculo?
Em síntese, a perícope salomônica, urdida em um reino de glórias
passageiras, não só profetiza, mas também cura os "últimos dias"
paulinianos, convidando-nos a cingir preceitos ao pescoço como um colar de luz
contra as trevas relacionais e políticas. Em um mundo de conexões fugidias e
morais maleáveis, onde o político maquiavélico ignora o bem comum e o homem
comum esquece o afeto perene, voltemo-nos à instrução como sentinela: ela
direciona o passo, vela o repouso e desperta a consciência. Que, à luz de Kant
em Crítica da Razão Prática, adotemos o imperativo categórico – "Age de
tal modo que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio" –,
fundindo-o à teologia da cruz, onde o amor de Cristo endireita nossa
flexibilidade. Só assim, o caminho de vida se inflama, convertendo tempos árduos
em alvorecer de virtude eterna. E agora, leitor, o que mudará em você a partir
deste instante?
(*) Chico Araújo é advogado, jornalista e teólogo, autor de “Quando
Convivi com os Ratos” (Editora Social,
2024) e “Sombras do Poder: As Vísceras da Corrupção no Acre na Operação
Ptolomeu” (Editora Social, 2025).
