Memórias de um Repórter: Da Selva Amazônica ao Coração do Poder
No calor
úmido dos seringais do Acre, onde o rio Jordão serpenteia como veia exposta da
Amazônia, nasceu em 1965 um menino que trocaria o atoleiro da BR-364 por
manchetes que abalam Brasília. Em Memórias de Um Repórter – Entre o Mimeógrafo
e o Centro do Poder, Chico Araújo
despeja uma vida crua, sem filtros: infância de fome e teimosia, redações
cheirando a tinta fresca e bastidores de CPIs que detonam como bombas. Não é só
autobiografia – é um raio-X do Brasil rachado, onde o jornalismo vira arma
contra o silêncio imposto.
Araújo
reconta os contrastes da origem como quem narra uma pauta quente: a vastidão
dos igarapés ancestrais, os perigos dos rios inchados e uma família pobre que
apostava tudo na educação para driblar o abandono. De garoto trilhando
quilômetros de lama em busca de aulas no Instituto São José, ele descobre o
ofício nas primeiras cópias mimeografadas – um improviso que cheirava a
revolução. Influenciado pelo escritor Leandro Tocantins e pelos padres alemães
exilados pelo regime de Hitler, que o iniciaram nas letras e na resistência, o
jovem Araújo vê no jornalismo não carreira, mas ferramenta para amplificar
vozes sufocadas pela mata e pelo poder.
A história
avança em ritmo de reportagem afiada, cronológica e entrelaçada: das raízes
acreanas, com microfone na Rádio Educadora 15 de Junho e redações da Folha do
Acre e O Rio Branco, aos furos que marcam época. Explosões de bombas caseiras
em gráficas, greves que param cidades e laços com ícones como Chico Mendes, o sindicalista
assassinado, e Edmundo Pinto, o político visionário fuzilado em São Paulo.
Esses anos forjam uma ética inabalável, ancorada na gleba familiar e nas
máquinas de tinta que prometem mudança. Há o episódio humilhante no Diário do
Acre, onde, sem grana para aluguel, ele "mora" nas oficinas após as
tiragens noturnas – leito de folhas impressas e cobertor puído, um teste de
fogo que tempera a determinação.
Como
repórter e depois editor-chefe de A Gazeta, Araújo cava um escândalo que choca:
o tráfico de adolescentes garotas, trocadas por gramas de ouro nos garimpos
clandestinos de Rondônia. Um esquema de exploração sexual camuflado nas veias
douradas da Amazônia, denunciando a escravidão moderna que devora vidas jovens
por migalhas de riqueza extrativista. É o tipo de pauta que não sai da cabeça –
e que ecoa o caos sistêmico.
O eixo vira
para Brasília, via TV Acre e O Estado de S. Paulo, onde as frentes quentes
viram rotina: CPIs que explodem como minas, como a das Obras Inacabadas em
2001, na qual ele assessora o deputado Damião Feliciano para mapear desvios
bilionários em obras-fantasma. Prisões de magnatas como Luiz Estevão e Sérgio
Naya expõem impérios de areia movediça; tramas cirúrgicas revelam a corrupção
enraizada. No Estadão, ele mergulha nas operações da PF contra o narcotráfico
na fronteira com a Colômbia: apreensões de cocaína, assassinatos de indígenas
por guerrilheiros e emboscadas em Tabatinga que desmontam rotas pelos rios
Juruá e Solimões, financiando eleições e milícias. A CPI do Narcotráfico de
1999, que ele cobre de perto, indicia 827 nomes – de chefes do crime a juízes
–, pintando o Acre como laboratório da "narcopolítica", com voos
charter e sumiços brutais.
A descida ao
submundo ramifica em capítulos que testam limites éticos: passagens pela
agência Duda Mendonça, desmascarando o circo das campanhas; no Ministério da
Reforma Agrária com Raul Jungmann no governo FHC, mediando brigas por terra
entre extrativistas e latifundiários; e no Jornal de Brasília, com matérias
sobre biopirataria – garimpo ilegal de material genético amazônico por
multinacionais. Essas pautas inflamam a CPI da Câmara, catalisando inquéritos
sobre patentes roubadas que sangram a biodiversidade brasileira. Há a denúncia
bombástica da venda de sangue de indígenas na internet: amostras genéticas de
povos como Karitiana, Suruí e Yanomami, comercializadas por US$ 85 cada pelo
Instituto Coriell, nos EUA, sem um centavo para as comunidades. Escândalo que
vira capa do The New York Times em 2007 e acende protestos indígenas.Cargos no
Congresso – da assessoria à Vice-Presidência do Senado à Mesa Diretora da
Câmara – viram o espelho do avesso: rejeições a rachadinhas, áudios de propinas
milionárias e intimidações que medem o preço da retidão. Como setorista no
Planalto, ele decifra alianças que constroem ou quebram o país. Casos que
humanizam o furacão: a prisão da filha de um embaixador por tráfico, golpe na
elite diplomática; as "candidatas biônicas" no Miss Brasil, farsa que
zomba de instituições; e, no Acre, cobaias humanas em testes de malária pela
Fiocruz em 2006 – voluntários pobres, indígenas e ribeirinhos, pagos para serem
picados por mosquitos infectados, um colonialismo médico que paralisa pesquisas
e expõe desigualdades.
Recusas a
subornos não são troféus isolados, mas fios de uma integridade forjada na
penúria – como o agricultor preso em Brasília, no Vale do Amanhecer, por
extrair casca de árvore para remédio caseiro à esposa doente, punição que grita
desigualdade ecológica. No crime, ele narra a cassação de Hildebrando Pascoal,
o "Deputado da Motosserra", por um império de matança no Acre; e a
rede de Orleir Cameli, ex-governador, facilitador de céus criminosos, com o
confisco de seu Boeing 727 em 1995, recheado de contrabando em Guarulhos – uma
fortaleza aérea que escondia sonegação e laços com o tráfico. Alarmante também
o desvio do Fundef: bilhões para educação no Norte sugados por licitações
falsas, até pra comprar cuecas, um roubo ao futuro das crianças que Araújo
chama de "câncer da disparidade".
Pela pena de
Araújo – que mescla o fluxo sinuoso de Guimarães Rosa ao bisturi de Euclides da
Cunha –, detalhes pulam como flashes: cheiro de tinta metálica nas prensas,
medo de capangas nas sombras, vício do poder e alívio da verdade nua. Vai além
da memória: é hino à teimosia amazônica, reconstrução do Brasil pelas trilhas
remotas ao Planalto de segredos. Indicado a fãs de crônicas investigativas como
Gay Talese ou Eliane Brum, o livro provoca: em tempos de fake news, qual o
custo de contar o real?
No fim,
Memórias de Um Repórter sobe do pessoal ao coletivo: apelo pelo jornalismo como
contrafogo à ideologia tóxica e ao veneno digital. Araújo invoca uma
"palavra que não seca", para resgatar não só histórias solitárias,
mas o pano rasgado da nação. Suas pegadas no Acre – fundando o curso de
Jornalismo na Ufac e revivendo jornais locais – e as reviravoltas em Brasília,
como "morar com ratos" em 2008-2009, resgatado por um envelope
anônimo no Senado e cargo na Câmara com Rose de Freitas, provam que o herói é a
persistência cotidiana. Não é fim de ciclo, mas grito de guerra: para
jornalistas de peito, ativistas e leitores atentos, é o lembrete do Hino do
Acre – resistir "sem cair, sem recuar, sem temer" –, pulsando um
futuro em linhas que não apagam.
