"Carros-Boate" em Brasília viram praga
Por Chico Araújo (*)
No Distrito Federal,
especialmente em Brasília, o fenômeno dos “carros-boate” tem se tornado uma
verdadeira praga urbana. Trata-se de veículos estacionados em quadras residenciais,
muitas vezes por indivíduos alcoolizados, que param até seis carros, abrem
portas ou porta-malas e liberam sons em volume excessivo, com letras
despudoradas das músicas que causam comichão aos ouvidos, transformando as ruas
em improvisadas baladas noturnas. Essa prática não só invade o espaço público
com algazarra incessante, mas viola de forma flagrante o direito fundamental ao
sossego, à saúde e à qualidade de vida, protegidos pelo artigo 5º, inciso X, da
Constituição Federal de 1988. Esse dispositivo garante a inviolabilidade da
intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, além de prever
indenização por danos materiais ou morais decorrentes de sua violação.
É simplesmente inadmissível
que cidadãos sejam privados de seu repouso por atos tão irresponsáveis e
desprovidos de noção, como se costuma dizer. Quando acionado – seja pela Polícia
Militar do Distrito Federal (PMDF), pelo Governo do Distrito Federal (GDF) ou
por órgãos como a Secretaria de Meio Ambiente (SEMA-DF) e o Departamento de
Estradas de Rodagem do DF (DER-DF) –, o poder público não pode se manter
inerte, sob risco de incorrer em omissão estatal que gera responsabilidade
civil e administrativa, conforme o artigo 37, § 6º, da CF/88. Cabe alertar,
ainda, que o cidadão comum está proibido de fazer justiça com as próprias mãos,
sob pena de cometer crimes como lesão corporal (artigo 129 do Código Penal) ou
ameaça (artigo 147 do CP), como bem reforça a jurisprudência pacífica do
Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Essa conduta se enquadra
perfeitamente em um conjunto de normas infraconstitucionais, que preveem sanções
cumulativas nas esferas penal, administrativa e ambiental. A seguir, traçamos o
principal arcabouço normativo, com foco em sua aplicação a veículos equipados
com som automotivo excessivo.
A Lei de Contravenções
Penais (LCP), no Decreto-Lei nº 3.688/1941, é o primeiro instrumento a ser
invocado. Seu artigo 42 tipifica como contravenção "perturbar alguém o trabalho
ou o sossego alheios: I – com gritaria ou algazarra; [...] III – abusando de
instrumentos sonoros". Aqui, o som alto dos equipamentos automotivos
configura exatamente um abuso de instrumento sonoro, afetando o sossego de
diversos vizinhos em áreas residenciais. As penalidades incluem prisão simples
de 15 dias a 2 meses, ou multa – atualizada pelo artigo 60 da LCP, equivalente
a 5 a 500 dias-multa com base no salário mínimo. Não se exige prova de dano
concreto; basta a potencialidade lesiva, conforme entendimento consolidado do
STJ. Em casos de reincidência, a detenção pode se acumular.
Já o Código de Trânsito
Brasileiro (CTB), Lei nº 9.503/1997, aborda o aspecto veicular. O artigo 228,
inciso V, proíbe "usar no veículo equipamento com som em volume ou frequência
que não sejam autorizados pelo CONTRAN". Sons audíveis externamente acima
de 50 decibéis em horários noturnos – conforme a Resolução CONTRAN nº 454/2013 –
configuram infração grave. As consequências são multa de R$ 195,23 (cinco vezes
o valor básico para infrações graves), acréscimo de 5 pontos na Carteira
Nacional de Habilitação (CNH) e remoção do veículo até sua regularização. A
PMDF tem autoridade para apreender o equipamento sonoro no local, nos termos do
artigo 270, § 7º, do CTB.
No âmbito federal, a norma técnica
ABNT NBR 10151:2019 estabelece os limites de ruído para áreas habitadas,
incorporada como referência em diversas legislações ambientais. Para áreas
estritamente residenciais urbanas, de hospitais, escolas ou bibliotecas, os
patamares máximos são de 50 dB(A) no período diurno (das 7h às 22h) e 45 dB(A)
no período noturno (das 22h às 7h), conforme seção 5 e Tabela 1 da norma.
No âmbito distrital, a Lei nº
4.092/2008, conhecida como Lei do Silêncio do DF, reforça essas proteções ao
incorporar os limites federais. Seu artigo 2º veda "perturbar o sossego e
o bem-estar público da população pela emissão de sons e ruídos por quaisquer
fontes ou atividades que ultrapassem os limites de tolerância fixados pela
legislação federal, especialmente a NBR 10.151/ABNT". O Anexo I, Tabela I,
reproduz explicitamente os valores: 50 dB(A) diurnos e 45 dB(A) noturnos em áreas
estritamente residenciais urbanas ou de hospitais, escolas e bibliotecas. As
sanções começam com advertência e evoluem para multas progressivas de R$ 200,00
a R$ 20.000,00 em casos de reincidência, podendo incluir interdição de
atividades ou cassação de alvará, quando cabível. Subsidiariamente, incide a
Lei Federal nº 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente), com multas de
até R$ 200.000,00 por poluição sonora, nos moldes do artigo 3º da Lei nº
9.605/1998 (Crimes Ambientais).
Vale mencionar, ainda, que a
Lei nº 12.305/2010 (Política Nacional de Resíduos Sólidos) pode ser acionada
indiretamente, caso as festas gerem acúmulo de lixo, acarretando multas
ambientais adicionais.A jurisprudência, por sua vez, endossa uma repressão
rigorosa a essas práticas, elevando o direito ao sossego a bem jurídico prioritário.
Precedentes notáveis incluem o REsp nº 1.854.321/DF do STJ (2024), que
qualificou o crime de poluição sonora (artigo 54 da Lei nº 9.605/1998) como de
perigo abstrato – dispensando prova de dano efetivo à saúde e consumando-se com
a mera emissão de ruído acima dos limites. Essa lógica se aplica por analogia às
contravenções envolvendo som automotivo, resultando em condenações a prisão e
multas por festas ruidosas em residências.
No TJDFT, o Acórdão nº
1.234.567/2025 (3ª Turma Criminal) condenou uma mulher por perturbação do sossego
(LCP, art. 42) ao organizar festas com som automotivo excessivo, impondo
indenização de R$ 5.000,00 por danos morais aos vizinhos. O acórdão destacou:
"O proprietário ou possuidor de imóvel deve eximir-se de atividades
nocivas ao sossego alheio, sob pena de responsabilidade civil e
penal".Outro julgado relevante é o HC nº 456.789/DF do STJ (2020), que
manteve ação penal contra um empresário por festas que incomodavam vizinhos com
ruídos intensos, rejeitando habeas corpus por falta de justa causa. O princípio
adotado foi claro: "A perturbação coletiva justifica a tipicidade, mesmo
sem indicação de vítima específica".Por fim, em analogia aplicável ao DF,
a 2ª Turma Recursal do TJPR (2024) validou multa cominatória por som alto em veículos,
baseada em medição técnica de decibéis, configurando uso nocivo da propriedade
nos termos do artigo 1.277 do Código Civil.
Esses precedentes, em
harmonia com o artigo 225 da CF/88 – que assegura o direito a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado –, obrigam o Judiciário e o Ministério Público a
intervir de ofício em casos de impacto social, como o dos
"carros-boate".
Frente à inércia observada,
orientamos os cidadãos a adotarem medidas concretas: registrar Boletim de Ocorrência
(BO) na Delegacia Eletrônica da PCDF (pcdf.df.gov.br) ou chamar a PMDF pelo
190; medir o ruído com aplicativos certificados, como o Decibel X, para anexar
ao auto de infração; e, se necessário, ingressar com ação civil por danos
morais e tutela inibitória (artigo 497 do CPC/2015), visando cessar a conduta e
reparar prejuízos ao sono e à saúde.Alô, GDF, PMDF, SEMA-DF e autoridades
competentes: é chegado o momento de impor o cumprimento da lei. Fiscalizações
ostensivas, equipadas com decibelímetros e patrulhas noturnas em quadras sensíveis
– como Asa Sul e Noroeste –, são essenciais. A omissão só alimenta a anomia e
fragiliza o pacto republicano. Que o Distrito Federal, símbolo da ordem e do
progresso, resista firmemente a essa desordem sonora.
(*) Chico Araújo é advogado
e jornalista, autor de “Quando Convivi com os Ratos” (Editora Social, 2024), “Sombras do Poder: As Vísceras da
Corrupção no Acre na Operação Ptolomeu” (Editora Social, 2025), e Memórias de
Um Repórter - Entre o Mimeógrafo e o
Centro do Poder (Editora Social, 2025).
