Por Chico Araújo
Brasília, a senhora de 65 anos,
completados em 21 de abril de 2025, carrega nas costas o peso de um estigma tão
velho quanto suas cúpulas desenhadas por Niemeyer. “Brasília só tem ladrão,
corruptos…”, “Brasília tem que ser destruída…” — frases que ecoam como um
refrão mal ensaiado, repetidas por bocas que desconhecem a história, a
antropologia e a alma dessa cidade. É um discurso perfunctório, encharcado de
preconceito, no sentido mais pejorativo da palavra: um ranço que ignora a
complexidade de um lugar que, mais do que concreto e corrupção, é feito de
gente. E que gente! Gente de todos os cantos do Brasil e do mundo, que fizeram
do Distrito Federal um caldeirão cultural, um mosaico de histórias, sonhos e,
sim, contradições.
Vamos começar desmontando o preconceito
com um pouco de filosofia. Como já dizia o velho Sócrates, segundo Platão, “Não
é difícil evitar a morte; o difícil é evitar a maldade, pois ela corre mais
rápido que a morte.” Brasília, como qualquer ajuntamento humano, não está imune
à maldade — corrupção incluída. Mas rotulá-la como a Meca dos corruptos é uma
preguiça intelectual que desonra a verdade. A cidade, com seus 2.982.658
habitantes (segundo a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios Ampliada de
2024), é um microcosmo do Brasil. Aqui, nordestinos — com destaque para Bahia,
Maranhão, Piauí, Pernambuco e Ceará, que formam a maioria dos migrantes desde a
construção da capital — se misturam a goianos, mineiros, paulistas, acrianos
(como eu, que vim do Acre há três décadas) e até estrangeiros. Somos 44,64% de imigrantes,
sendo 22,3% do Nordeste. Brasília não é uma ilha de vilões, mas um espelho da
nação.
Sociologicamente, é fascinante como o
estigma de Brasília reflete o que Émile Durkheim chamaria de “anomia”: uma
sociedade em crise de valores, que projeta suas frustrações em um bode
expiatório. O Congresso Nacional, com seus 594 parlamentares (81 senadores, 3
por estado e pelo DF, e 513 deputados federais, variando de 8 a 70 por estado),
é um retrato dessa diversidade federativa. Quando estoura um escândalo — e, oh,
como eles estouram! —, a culpa recai sobre Brasília, como se a cidade tivesse
parido os corruptos. Raramente o dedo aponta para o verdadeiro berço dos
escândalos: estados distantes, de onde vêm deputados e senadores com suas malas
de promessas e, às vezes, de propinas. José Roberto Arruda, preso na Operação
Caixa de Pandora em 2009, é um exemplo local, mas e os outros? O Mensalão, a
Lava Jato, o Orçamento Secreto — quantos brasilienses estavam no epicentro?
Spoiler: quase nenhum.
Antropologicamente, Brasília é um
experimento humano. Construída em 41 meses, sob a batuta de Juscelino
Kubitschek, Lucio Costa e Oscar Niemeyer, a cidade nasceu para ser um símbolo
de progresso, mas também carrega as marcas de um Brasil desigual. A presença
negra, por exemplo, é majoritária (58,3% da população, segundo a Pdad-A 2024),
mas sub-representada nas narrativas oficiais. Como diz Ana Flávia Magalhães
Pinto, historiadora da UnB, a memória negra no DF sofre com o “descompromisso
com o direito à história”. Os candangos, muitos nordestinos, ergueram Brasília
com suor e sonhos, mas foram empurrados para as periferias, como Ceilândia, a
mais populosa com 292 mil habitantes. E ainda assim, ousam chamar Brasília de
corrupta, como se a corrupção fosse um traço cultural local e não um reflexo de
dinâmicas nacionais.
Agora, uma pitada de humor: se Brasília é
a capital da corrupção, então o Brasil inteiro é seu império. Afinal, o Índice
de Percepção da Corrupção de 2023 colocou o Brasil na 104ª posição entre 180
países, com a mesma pontuação de Argélia e Ucrânia. Não é exclusividade
brasiliense, meus caros. É sistêmico. E, se me permitem um toque de sarcasmo,
destruir Brasília não vai acabar com a corrupção — no máximo, vai dar trabalho
para os arquitetos reconstruírem a nova capital em algum outro canto do
Planalto Central. Quem sabe em Goiás? Eles já tentaram anexar nossas regiões
administrativas.
Do ponto de vista bíblico, o respeito e a
justiça que Brasília merece ecoam em passagens como Provérbios 21,3: “Praticar
a justiça e o direito é mais aceitável ao Senhor do que o sacrifício.” Ou
ainda, em Miqueias 6, 8: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que
o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a beneficência, e
andes humildemente com o teu Deus?” Brasília, com sua gente trabalhadora e
honesta, merece esse respeito. Não é justo que a cidade carregue sozinha o
fardo de um mal que atravessa o país. Como dizia o Zygmunt Bauman, “a injustiça
de tratar igualmente coisas desiguais é tão grande quanto a de tratar
desigualmente coisas iguais.” Tratar Brasília como sinônimo de corrupção é uma
injustiça que ignora sua diversidade, sua história e sua humanidade.
Portanto, é hora de olhar para essa
senhora idosa com mais carinho. Brasília não é perfeita — quem é? —, mas é um
lugar de resistência, de mistura, de luta. É a casa de milhões que, como eu,
escolheram fincar raízes nestas plagas. É a cidade que acolheu o candango, o
imigrante, o sonhador. É a capital que, apesar dos pesares, continua a pulsar
com vida, cultura e esperança. Respeitem a senhora Brasília. Ela não é o
problema; ela é parte da solução.
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