CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*
A
vida se completa todos os dias e as experiências ditam o rumo da prosa épica,
lírica e dramática que é o destino. Depois de vestir a pele do pintor espanhol
das nove esposas, por longos anos, já estava mais do que na hora de viver uma
nova aventura terrestre. A humanidade, aos gritos, há muito clamava por um
benfeitor emérito que viesse para continuar obras dantes inacabadas.
Numa
daquelas noites quentes de verão, a nuvem que transportava o anjo pairava sobre
um rochedo à beira mar. O adorno natural se completava com uma enseada em forma
de ferradura e uma praia estreita de areias brancas de tirar o fôlego. A luz da
lua fazia da visão algo digno dos melhores quadros de Raffaellino del Garbo, o
pintor renascentista florentino. As regiões tropicais, como os olhos verdes das
nossas morenas mais espetaculares, são mesmo muito bonitas. Em síntese, tudo
era de uma beleza sem par.
Amanhecido
o dia seguinte, ainda no mesmo continente, a nuvem agora deixava o anjo ver uma
cordilheira imensa coberta por um gelo azul prateado ao sol da manhã. Depois do
meio-dia, então, uma breve viagem e já estavam sobre imensa floresta salpicada
pelas flores das árvores do pau d’arco roxo e do amarelo, dentre milhões de
outras. A pouca fluidez do vento deixou-os ficar pra lá e pra cá durante dias,
talvez meses. E foi aí que, em vista do marasmo tropical, segundo ordens do
espírito absoluto, ele houve por bem descer para, mais uma vez, habitar a terra
enquanto humano tropeçante, ridículo, limitado, com o coração cheinho de amor
pra dar ou vender a bom preço, e uma libido pecaminosa que fluía aos borbotões
pelas mil frestas da alma pachola.
Motivos
já sabidos levaram o menino à quase morte vitimado por uma doença que o deixou
em pele e osso durante dois anos. Mas sobreviveu. Deus sabia o que estava
fazendo, claro.
Em
meio ao denso verde escuro da floresta, eis que o anjo viu uma clareira. Era
uma cidade amazônica nascente. Ali desceu e se encarnou no seio de uma virgem
de trinta e três anos, a idade que tinha o anjo maior quando fez a grande obra
em benefício dos humanos. A cidade carregava o pomposo nome de Farol de
Almas Brandas.
O
menino aprendeu a ler aos cinco de idade. Até a chegada à escola, aos sete,
pois, ele viveu um estágio avançado de aperfeiçoamento dos melhores na leitura
e na escrita. A irmã era professora e a mãe sabia onde os macacos cochilavam no
pingo do meio-dia.
Um
dia, então, na casa da rua das castanholeiras, apareceu um garotinho da mesma
idade do menino perscrutador, vindo de uma rua adjacente e bem distante para o
infante que viera sozinho. Era visita de criança, mas era visita.
O
visitante bacaninha soube, por A mais B, que um menino de seis anos lia de
carreirinha e sabia contar até mil. Era um colosso. Ele jamais houvera visto
tal façanha e, de posse de um livro que trazia às mãos, pediu que o outro lesse
a fábula do Gato de Botas e o seu amestrador, o Marquês de Calabar.
Pronto.
O menino danou-se a ler, às carreiras, e o outro ficou de olhos esbugalhados de
tão espantado com a celeridade do primeiro. Nunca tinha visto aquilo. Nem
precisou falar em números. Ele se foi. Só vieram a se encontrar bem depois, já
nos tempos de colégio.
Corria
um ano qualquer de meados do século anterior a este. Agora mesmo, oficialmente,
enfim, o menino e anjo estava matriculado numa escola do governo bem pertinho
de casa. Naquela época não chamavam uniforme. Era farda, tendo em vista ser
aquele um tempo em que o general da banda mandava matar índios, sem nenhuma
cerimônia. Por isso, ele ia fardado para a aula, acompanhado da mãe que deixaria
muitas recomendações para a primeira professora, uma morena belíssima, do grupo
escolar.
Na
fila, antes da entrada, ele já cantou o hino nacional completinho. Trazia-o na
cachola, de cor. E, pela primeira vez, adentrou a sala de aula, onde umas
quarenta crianças faziam uma grande balbúrdia em luta corpórea para conseguirem
sentar-se nas carteiras da frente. Ele ficou na maior tranquilidade. É que, em
casa, alguém dissera que a professora era do tipo que arrancava as tripas de
qualquer moleque pela boca. E era, sim.
Eis
que a professora e diva chegou, deu uma reguada na mesa e todo mundo ficou
quietinho, em silêncio de moscas. Em seguida, ela bradou:
-
Ei, você! Puxe essa carteira pra cá. Fique aqui bem pertinho de mim.
O
menino e anjo olhou pra trás e para os lados, percebeu que ela falava com ele e
não titubeou. Foi sentar-se colado na mesa da professora que já fazia a chamada
para uma plateia de meninos e meninas atônitos, boquiabertos.
-
Agora, todos devem abrir o livro na primeira página, onde está escrito A
fazenda Mococa. Esse mocinho aqui – disse apontando para o menino –
vai tomar a lição de lá pra cá e ou vou tomando a lição de cá pra lá. Quero ver
quem é que já sabe ler alguma coisa.
Era
um pouco mais de uma hora da tarde e aquilo foi como uma lufada de vento na
cara do menino. Haviam dito à professora que o garoto lia até em castelhano.
Daí em diante, passou a exercer o desiderato que lhe acompanhou pela vida
afora. Estava escrito nas estrelas: ele misturaria os métodos usados para dar
aulas aos truques utilizados nos espetáculos. Ficaria entre a técnica apurada e
a picardia inteligente. Show de bola.
Metade
das crianças não sabia ler coisa alguma. O Anastácio, então, meteu a cabeça na
carteira se auto flagelando por sequer conhecer o A. A menina Catarina quase
arranca os cabelos crespos em alto nível, pelo mesmo motivo. Uma boa parte dos
alunos balbuciava alguma coisa e umas três ou quatro crianças liam direitinho.
O
menino e anjo esbelto demais e metido a sabido acompanhou a lenga-lenga da
professora no exercício dos seu ofício durante um ano inteirinho. Era 1964.
Logo
ali pelos primeiros dias, de novo, o sinal do recreio tocou. (Esta era a
palavra, pois o termo intervalo não era usual entre os
escolares.) O menino tomou o leite quente doado pelos americanos. Uma gororoba.
Esgueirando-se rente à parede, viu muitas crianças que corriam em meio ao
campinho dos fundos do grupo escolar. Também ele resolveu correr e logo vinha
um garoto atarracado com cara de valente correndo atrás dele. Não percorreu três
metros, tropeçou e caiu. Os sacanas mais velhos haviam amarrado uma touceira de
capim à outra. Ele, bobo, meteu as fuças no chão e, o que foi pior: o baixinho
com cara de doido vinha fugindo de alguns outros e não estava perseguindo o
nosso herói atônito em miniatura.
Era
uma terça-feira e a segunda metade da aula foi atordoante. A blusa branquinha
de tricolina, com duas pregas largas na frente, na vertical, ficara manchada do
verde do capim por ocasião da queda. Uma merda. A mãe recomendara que aquela
blusa deveria ser usada durante toda a semana letiva. Pior é que ela era uma
cearense ranzinza até as tripas; tutano quente pegando fogo. Mas a situação foi
contornada e tudo deu em nada.
O
final do ano veio e, contando de zero a cem, o menino ficou com a média geral
fixada em noventa e sete, a melhor nota da turma. No último dia de aula, foi
pra casa com os braços carregados de presentes. Ele havia recebido das
professoras e da diretora meias, sabonetes, lápis, cadernos e um corte de
tecido. Coisa daquela gente feliz e humilde do nosso velho e bom Farol de Almas
Brandas.
Que
Deus lhes abençoe.
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*Escritor.
Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível (in box)
no https://www.facebook.com/claudio.porfiro>