POR JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS
27/05/2019 01:20
Meu caro amigo me perdoe, por favor,
mas hoje não tem Bolsonaro ou qualquer esquisitice de seu circo de gente
ordeira e virtuosa, essa nova nata da malandragem. Hoje tem Chico Buarque,
prêmio Camões de literatura, e ele vem com o chocalho amarrado na canela. Não
interessa se é na da esquerda ou na da perna direita. Aos gênios, a feijoada
completa e a festa, pá!, da morena dos olhos d'água.
Consta nos astros, nos autos, nos
signos, que hoje não vai se perder tempo com mané Crivela ou com o
que-será-que-será que andam cochichando nas reformas da previdência, nas
contingências de verbas e demais desinteressências. Todo dia tudo sempre igual.
O malandro agora é presidencial e dia-sim dia-não, com honra e júbilo, ele
medalha de mérito os próprios filhos. Tijolo por tijolo num desenho sórdido.
Vão passar.
Hoje é dia de lembrar satisfeito, o
radinho tocando direito, que por aqui já passaram sambas imortais e, a despeito
do Sanatório Geral que a todos loucupleteia, o piano do compositor popular,
essa glória nacional, vai continuar subindo a Mangueira.
Deus é cara gozador, a ponto de botar
o filho para pregar em cima das goiabeiras nordestinas. Mas também joga a
favor. Ele podia colocar qualquer um de nós cabreiro, fazer nascer mexicano e
morar debaixo de um ridículo sombreiro. Só que não. Em troca do fardo de ser
brasileiro, Deus, com açúcar e com afeto, deu a todos nós o upgrade de viver no
mesmo período em que aqui está, a caminhar ligeiro pelo Leblon maneiro, o Chico
Buarque de Holanda peladeiro.
Hoje não tem o diploma falso do
Witzel. O personagem da semana é um herói de verdade. Montado num cavalo que
fala o mais fino português, Chico educa o ouvido nacional quando diz, no meio
de um sambinha, que 'a porta dela não tem tramela e a janela é sem gelosia'.
Drummond invejou o ritmo. Em meio a tanta lama, tão pouca brahma, meninos se
alimentando de luz, vive-se num país em que é possível ouvir no rádio do táxi
que nós gatos já nascemos fortes e somos capazes de enfrentar os batalhões, os
alemães e os seus canhões. Mire-se no exemplo.
Outras nações são feitas de homens e
livros, elementos que faltam aqui. Chico Buarque é a voz que nos resta, a veia
que salta, aquele que torna suportável essa noite de mascarados e pigmeus de
boulevard. Sempre que tira o violão da capa e pega o dicionário de rimas, o
país melhora. Há quem prefira escrever a história do Brasil com fuzil, desligar
o radar da estrada e azucrinar os golfinhos de Angra com turistas esporrentos.
Chico, armado com a bemol natural sustenida no ar, atira de volta o "luz,
quero luz" que cantam os poetas mais delirantes.
O Brasil de 2019 é uma pátria-mãe tão
distraída que parece ter perdido a noção da hora. Ao Deus-dará. É um trem de
candango, um bando de orangotango, todos com um bom motivo para esfolar o
próximo. A maioria, trancada em pânico nos seus camarins, toma calmante com um
bocado de gin. Lá fora, no Brejo da Cruz, desfila a estarrecedora banda de
napoleões cretinos, todos de marcha-ré em permanente ode aos ratos e às
tenebrosas transações. Nas horas vagas, apedreja-se a mais recente Geni.
Chico dá esperança. Mesmo com todo o
problema, todo o sistema, ele inventa um outro país - e a gente vai levando. É
só uma página infeliz da nossa história.