CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO*
Estas mal traçadas
linhas constituem uma crônica melíflua demais e, por assim dizer, poderia ser
chamada trezentos dias sem ela. Talvez até venha a se
transformar em roteiro de filme estilo água com açúcar. Nunca se sabe quantos
repiquetes ainda vão passar por debaixo da ponte, afinal, hoje, o inverno já
faz parte do passado. Senão vejamos.
Depois de uma breve
visita à Escócia, onde ainda hoje reside a filha única, professora de teoria
geral da arte, na Universidade Caledônia de Glasgow, Sir Leonard Atkinsons,
aposentado como pesquisador paleontólogo emérito em Leeds, resolveu fazer uma
viagem de seis meses a New York, onde talvez encontrasse um novo amor, dado que
a esposa o largara sem delongas, por uma novinha, assim como quem deixa um pano
de sabão debaixo de uma cuia na beira do rio. Oh, céus.
Do Aeroporto John F.
Kennedy, onde encontrou à sua espera um velho amigo, Gary Fisher, dos tempos da
graduação em Cambridge, pegou o trem metropolitano para Manhattan.
Desembarcaram numa das avenidas paralelas ao Central Park e, depois de uma boa
caminhada, comeram à tripa forra no tradicionalíssimo L. S. Kitchen. O amigo
tomou o rumo de uma livraria próxima e o nosso herói pouco precavido buscou
hospedar-se no Hotel Pennsylvania.
Era sábado e, à
tardinha, então, Leonard resolveu aventurar-se, a pé, ali pelas adjacências,
uma vez que o clima de verão se fazia bem ameno. Em dez minutos de passeio e já
adentrou o Old Town Bar, na 45 Leste, esquina com a 18ª Avenida. Nenhum
pub inglês era tão encantador, pelo menos aos olhos do nosso herói desavisado.
As vistas sequiosas de
raposa, imediatamente, vislumbraram figura feminina de protuberâncias e
reentrâncias dignas de um escultor inglês clássico. Ela bebia um ginger-ale em
cálice segurado apenas pelo indicador e o polegar. Os demais dedos sobravam
solertemente levantados para fazer fita. Um batom carmim e roupas leves davam a
ela um charme estilo Tinsley Mortimer, a super socialite. Pior: ela grudou os
olhos no nosso herói e este lambeu os beiços, descuidadamente. Não havia
maldade mesmo. Era um homem de seis décadas educado nos mais refinados círculos
de Londres. A lascívia mesmo partiu da Sally, uma ninfeta linda como o pôr do
sol no Alasca.
Não tardou e, depois
do primeiro uísque, ele enviou para ela, por intermédio do garçom, algumas
palavras um tanto toscas acompanhadas de um verso de Byron: Quanto mais
conheço os homens, mais quero bem ao meu cachorro. O nosso herói
enjambrado já estava doidão, mas ela entendeu como apenas um chiste e soltou um
sorriso de levantar labaredas. Pernas bambas, ele de pronto se levantou e foi
ter com a musa cintilante que o ofuscava em vista de tanta beleza.
Ela, agora, já não
bebia refrigerante. Estava entornando talvez a terceira dose de Jack Daniels, o
uísque com gosto de mel de marimbondo. A conversa girava em torno das pesquisas
dele nas terras altas da Escócia. Ela falava sobre a sua recente participação
enquanto modelo numa campanha da Sunshine Yellow, de lingeries. Foi um sucesso.
Não podia ser diferente, em vista do seu rosto de anjo, pose de ninfa e um par
de rabo descomunal. Faria outros trabalhos certamente. Uma agência já até a
convidara, e ela estava eufórica. Mas não podia esquecer o curso de medicina
que iniciara há pouco numa faculdade instalada ali próximo, a Gallatin New York
University, onde estava a conduzir-se muito bem.
Sally continuou a
falar de si e das suas qualidades. Disse que tinha vinte e um anos, enquanto o
interlocutor já brandia as sessenta e duas voltas, mas se dera muito bem na
vida, como pesquisador, num país em que a ciência é levada muito a sério, daí o
estágio de desenvolvimento alcançado pelo Reino Unido.
Mais tarde, já além da
meia-noite, de braços dados, resolveram caminhar pela 18ª Avenida, onde os
transeuntes iam e vinham em grande número. Era alto verão. Ela foi incisiva e
didática:
- Vejo que você anda
em busca de um novo amor. Algo me diz que não está aqui pela ciência, mas pelo
que lhe fala o coração. Não é isto?
- Pensando bem, acho
que sim. Nada em específico me traria a New York. Mas agora, analisando o
rebolar da carruagem, posso dizer que o meu coração aprovaria um novo
relacionamento, com certeza.
- Veja como são as
coisas. Venho de um relacionamento pueril com um moço de quarenta, mas, como
dizem os analistas, os homens só deixam de ser crianças já na casa dos
cinquenta e tantos. Em assim sendo, eu houve por bem pular fora daquele
barquinho chulo que entrava água por todas as frestas e aos borbotões. E estou
aqui de olho num coroa enxuto que já se tornou homem crescido aos sessenta e
dois. Graças.
- Assim o dizes e
assim tentarei ser. As suas expectativas não serão frustradas, se ou quando for
o caso, seja ao lado de quem for.
- Sempre tive uma
grande queda pelos homens maduros e acho que já caí de quatro pela sua pessoa,
meu querido Leo.
Seguiram sob as
alamedas que enfeitam a Avenida Lexington, onde ela residia em apartamento
minúsculo. O convite para mais um drinque foi aceito e a noite se estendeu sob
os eflúvios do uísque e do amor sem roupa. Uma beleza.
E a história correu de
vento em popa, pelo menos por uma semana. A energia do nosso herói não se
esvaía, porque uma vitamina de guaraná em pó, cerveja preta, farinha láctea,
abacate e ovos de codorna, dentre outros, deixava-o em êxtase quase permanente;
ademais, a beleza e o cheiro inebriante da musa faziam a sua parte.
Mas veio o infausto.
Um telefonema no meio da oitava noite dava conta da internação de Mildred, a
filha professora, muito doente, em Glasgow. Ele teria que se afastar da bela,
para dar atenção ao netinho, ou enquanto durasse a internação. Um planejamento
detalhado da vida a dois já houvera sido feito, mas as contingências humanas
houveram por bem separar o casal de pombos arrulhantes. Uma peninha.
As mensagens de
WhatsApp iam e vinham através do Oceano. Também os telefonemas. Os contatos
eram feitos dez ou mais vezes por dia. A distância dera um novo fulgor à
paixão. Lágrimas escorriam de leste a oeste, e vice-versa, a se misturar com as
águas do Atlântico. Santa loucura.
Mas trezentos dias se
passaram e, na Escócia, o internamento de Mildred prosseguia. A doença agora arrefecia
aos poucos e os cuidados do pai eram ininterruptos. A distância a cada dia mais
maltratava os apaixonados. Ela não podia viajar em vista das obrigações,
principalmente, relativas à medicina. Ele também não.
Foi aí que entrou no
meio daquela confusão de sentimentos enfermeira chamada Allison, uma bela
morena clara de olhos amendoados e cabelos da cor da asa da graúna. As mesmas
palavras foram ditas ao distinto e cobiçado cavalheiro. A escocesa confessou
também haver-se apaixonado pelo pesquisador gostosão. Pense numa delícia, ela.
Leonard Atkinsons,
pois, foi obrigado a pôr a bom termo o relacionamento nova-iorquino enviando
uma mensagem à bela onde se lia:
Querida
Sally. Tenho um novo amor, aqui na Escócia. Ela é de Edimburgo e conta com
vinte e oito primaveras. Há um mês, pediu transferência para Glasgow, alugou um
apartamento e me chamou para ir morar com ela. Estou indo. Agradeço pela sua
sinceridade em nunca me haver declarado amor. Não mentiu. Você é uma alma
boa.Peço desculpas por tudo. Sucesso. Adeus.
E agora, segue o
cortejo ao longe, serpenteando, colina acima e abaixo. É o enterro da última
quimera. E vai lá o poeta puxado pelas mãos lânguidas e firmes do destino.
Pensa ele que morrer sem se ter apaixonado pelo menos mil vezes, ou mais, é como
sequer haver nascido.
Assim a vida é.
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*Escritor. Membro da
Academia Acreana de Letras, Cadeira 27. Autor de O INVERNO DOS ANJOS
DO SOL POENTE, romance, à venda pelo https://www.facebook.com/claudio.porfiro >